Preciso descansar – por Flávia Borges
A escrita é um processo solitário. Mas nada é maior que a solidão que vem depois do último ponto final. Alguém inventou essa história de “deixar o texto descansar” e é preciso levar isso a sério. O texto, coitado, não aguenta mais olhar na tua cara, tampouco nos teus olhos com olheiras acentuadas. Com isso, você sai, marca um café do nada, se senta e fica pensando: “como é que o texto está lidando com aquela frase mal formulada?”. E ainda tem a parte de, secretamente, ficar desejando que a outra pessoa te pergunte do texto, só pra poder dizer que não, não quer falar disso, o texto tá ótimo, passa muito bem. Quem sabe o texto não fica sabendo da tua (falsa) calmaria e fique mais disposto.
O texto, por sua vez, não colabora e se materializa em todos os lugares. Você escreve a palavra “escombro” e percebe imediatamente quatro pares de sapatos pelo chão, roupas em toda parte, toalha molhada, poeira e papel. Nenhum sobrevivente. O texto não perdoa uma. O texto está lá, o tempo todo perguntando se a nossa memória (memória histórica e/ou coletiva) está sendo usada para nossa libertação ou para nossa servidão; e do nada resolve colocar uma música não executada há anos. Pronto. Eu quero pegar tudo o que já te dediquei até que não te reste nada, nem a memória. Como posso pensar isso? Só os ditadores têm medo da memória dos outros. E se esse texto for eu e se eu for a ditadora da minha história. Teve aquela pessoa que disse que fingir que não aconteceu não é o caminho. Em alguma medida, todos nós usamos censura e manipulação. Meu deus, o texto está louco. Vá descansar.
O texto parece fazer de tudo pra ficar. E parece que vai pra todos os lugares, rouba uma frase que ouviu na rua, conversa com você no ponto de ônibus enquanto todos acham que fala sozinha. O jogo vira e você é que fica agarrada ao texto. O texto está colaborando, mas você acha que é hora de sair do escombro. O texto está colaborado, mas você resolve fazer café, não importa se é noite. O texto está colaborando, mas você resolve olhar para um ponto vazio e branco do quarto: e se o texto acabar agora?
Texto: Flávia Borges
Foto: Arquivo Pessoal
Imagem interna: Pixabay