As mulheres e o jornalismo nas Vertentes
Um panorama contemporâneo dos desafios enfrentados pelas mulheres jornalistas de São João del-Rei e região
“Você tem um bom currículo, gostamos do seu desempenho na entrevista, mas um dos principais motivos para a sua contratação é o fato de você ser mulher. Como a nossa equipe de jornalistas e diretores é majoritariamente formada por homens, achamos que seria bom uma voz feminina para equilibrar a equipe.” Esta frase foi ouvida por dezenas de estudantes de jornalismo que passaram por um certo veículo de comunicação de São João del-Rei, segundo pesquisa realizada pela reportagem com as alunas do curso de Comunicação Social – Jornalismo da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Aprovadas para o cargo de estagiária para “equilibrar” o coro de vozes masculinas, essas são apenas algumas das várias mulheres que lutam pelo seu espaço no mercado de comunicação são-joanense.
Violências Cotidianas
Em seu livro “A Dominação Masculina”, o sociólogo francês Pierre Bourdieu atenta para a existência de um fenômeno cada dia mais recorrente, que não só explica, como também categoriza a situação descrita anteriormente: a violência simbólica.
Esse conceito apresenta uma forma de violência onde não existe coação física. Pelo contrário: a violência simbólica é uma forma de coação moral, econômica e social, muito mais sutil, que se apoia em certos status e tradições de uma comunidade. Essa violência se mostrou clara em levantamento realizado junto às alunas e a coordenação do curso de Comunicação Social em São João Del-Rei: as mulheres são maioria no curso de Jornalismo da UFSJ, têm as melhores notas e ocupam cargos essenciais nos veículos de comunicação – repórteres, estagiárias, produtoras, editoras… mas em se tratando de lugar de fala, de cargos com voz ativa e certo status perante a população, elas são, novamente, minoria.
Em uma sociedade que, a cada dia, adere ao neoliberalismo como bíblia comportamental e defende a unhas e dentes a meritocracia, é irônico perceber a hipocrisia que cerca os critérios de seleção. Uma vez que, para além de merecer – se mostrar capacitado e apto para o trabalho – é preciso apresentar um certo ‘padrão’ que incremente o famigerado merecimento. E esse padrão, além de branco, é, geralmente masculino.
Para a jornalista Cibele de Morais, a situação das mulheres nas empresas jornalísticas é um reflexo de como o patriarcado ainda é forte e presente na sociedade. “Essa nossa pouca presença nas empresas jornalísticas – e, em geral, em cargos de comando e posições decisivas – é um indicativo clemente da necessidade do feminismo. A gente ainda têm muita luta para lutar”, comenta Cibele. “Na empresa jornalística isso é ainda mais grave, pois são empresas absolutamente monopolistas e concentradas nas mãos de famílias extremamente conservadoras. Então, as mulheres acabam tendo certo espaço, mas como apoio, especialmente em temas tidos como masculinos, como economia e esporte.”, completa.
Ela ainda alerta para as particularidades locais de um problema que, atualmente, é global: “A situação na mídia nada mais é do que um reflexo da situação da mulher numa sociedade desigual e discriminatória. No Campo das Vertentes, essa é uma situação ainda mais gritante, pois essa é uma região pobre e periférica.”
História, tradição e opressão
A questão de gênero e o jornalismo se desenvolveram e se transformaram rapidamente nas últimas décadas, apresentando um novo cenário para os jornalistas que desejam colocar a questão de gênero na agenda midiática. Segundo relato do jornalista José Hamilton Ribeiro, na década de 1930 nem sequer havia banheiro feminino nas redações, apesar da presença feminina: “As empresas jornalísticas eram pensadas e construídas como ambiente de sauna brega: só para homem. […] Mulher podia ser telefonista, faxineira ou servia para fazer o café: circulava na área de serviço”.
No começo do século XX a dominação masculina na imprensa podia ser observada tanto na presença majoritária de homens nas redações, quanto no conteúdo dos veículos e na maneira como as mulheres foram retratadas por décadas.
Em São João del-Rei, houve um notório desenvolvimento da mídia entre as décadas de 1920 e 1950. No entanto, a forte influência da igreja católica, associada a fundação patriarcal que até hoje permeia o status quo da sociedade são-joanense, fizeram com que, por muito tempo, as mulheres fossem representadas apenas como personagens de cenários românticos, ou como figuras de apreciação – haja vista uma série de concursos de beleza e simpatia promovidos pelos jornais da época.
Até os dias atuais, a baixa representatividade de mulheres nos veículos midiáticos, aliada à hierarquia patriarcal que ainda rege os costumes e tradições da cidade contribui para a veiculação de uma imagem estereotipada da mulher são – joanense. Subjugada à cozinha, à família e à pressão estética, ela distrai-se consumindo conteúdo sobre esses temas e sobre a vida dos famosos, em um segmento bem específico da linha editorial conhecido como Sessão Mulher.
Maíra Eduardo é jornalista, já trabalhou como editora de jornalismo na Rádio São João, repórter na TV Campos de Minas e assessoria de imprensa na Câmara Municipal, e atualmente atua como consultora de marketing digital. Para ela, a tradição e a força que os locutores e jornalistas homens já possuem junto a comunidade é um dos fatores que corrobora para uma imagem estereotipada de inexperiência das mulheres no jornalismo, especialmente porque o fazer jornalístico na região do Campo das Vertentes têm em si características muito particulares e personalistas. “Quando eu cheguei na cidade e comecei a trabalhar na Rádio São João, não havia um modelo em que eu pudesse me basear”, lembra Maíra. “Toda a estrutura jornalística que a gente usava, tivemos que criar, e, nesse sentido, radialistas com mais tempo de casa – como o Roberto Miranda e o Geraldinho – me ensinaram tudo o que eu sei hoje sobre rádio”, completa.
Por causa disso, ela considera que a grande força que muitos homens têm dentro do jornalismo são-joanense se deve ao seu tempo de trabalho, e não ao seu gênero, visto que atualmente acontece uma transformação nas mídias, e quem consome os veículos tradicionais, como rádio, jornal e TV, acompanhou o surgimento e se afeiçoou a estas figuras. “Nós não tivemos uma mulher radialista lá na década de 60 para construir essa relação com o público mais tradicional, então as mulheres estão despontando hoje e construindo sua credibilidade junto à população”, analisa.
Apesar de ter em mente o aspecto histórico da mídia são-joanense, Maíra, que também trabalhou como assessora de imprensa na Câmara Municipal, destaca o desafio de se iniciar uma carreira enquanto mulher na região: “Quando cheguei, eu era muito nova, e ainda por cima era mulher, e quando você está nesta situação, as fontes não te dão muita confiança, especialmente as fontes de autoridade”, recorda ela, que várias vezes foi perguntada pelos entrevistados se era estagiária. “O pessoal não conseguia olhar pra mim e entender de cara que eu era editora de jornalismo. Além disso, muitas pessoas questionavam de qual família eu era, e quando eu dizia não ser de nenhuma família tradicional da região, dava para perceber certo estranhamento da fonte”, recorda.
A jornalista, que é mulher e negra, também indica um momento na sua atuação na TV Campo de Minas, quando começou a usar seu cabelo cacheado, e percebia certo estranhamento especialmente por parte do público. “Levou um tempo para eles se acostumarem, porque um cabelo como o meu há 3 anos atrás ainda era novidade, especialmente na TV”. Maíra reconhece a experiência que adquiriu tendo trabalhado nestes veículos. Atualmente, ela trabalha com Marketing Digital, fator que atribui a sua vontade de ser dona do seu negócio e a afinidade com as mídias digitais.
Denúncia anônima
Joana* estava no início de sua faculdade quando entrou como estagiária em um veículo de comunicação são-joanense. Com a saída do jornalista responsável, ela foi efetivada neste veículo e passou a a ser a jornalista responsável. “Eu estava começando no meu curso, então achei que seria uma experiência incrível e que complementaria super a minha graduação”.
Com o tempo, ela foi notando certas falhas éticas que impediam a plena realização do seu trabalho. “Lá eu não fazia jornalismo de verdade. Eu não tinha liberdade para ir para a rua, apurar pautas e conversar com pessoas”, conta ela. “Na maioria das vezes, eu só copiava e colava notícias de portais na internet”, completa.
Joana só tinha liberdade para apurar matérias e construir reportagens quando eram de interesse da diretoria do veículo, que têm fortes vinculações políticas. “Mas sempre que eu fazia essas matérias, elas não eram publicadas. Parecia que eu estava só indo lá representar a empresa e fingir que estava fazendo jornalismo.”
Um dia, surgiu a oportunidade de fazer uma matéria que iria ser publicada, e ela fez, seguindo o que estava aprendendo em sala de aula. Porém, quando a matéria chegou a público, não era a mesma que Joana havia escrito. “Os diretores do veículo editaram meu texto praticamente todo, sem falar comigo, deixando apenas três frases, e publicaram no meu nome”, denuncia. Tal situação começou a comprometer a saúde mental da jornalista, e a partir daquele momento ela percebeu que não queria mais permanecer naquele veículo.
“Nós pensamos muitas vezes no dinheiro, mas dinheiro nenhum vale o mal estar que aquela experiência estava me causando. Eu me sentia frequentemente desrespeitada, e por isso resolvi sair”, finaliza ela.
* O nome da entrevistada foi trocado para preservar a sua intimidade.
Repórteres: Clara Fernandes, Júlia Lemos, Marcela Amorim e Mariana Tirelli
Editores-Adjuntos: Arthur Raposo Gomes, Clara Rosa e Juliana Galhardo
Editora-Chefe: Profa. Najla Passos
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